O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), órgão vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos, está prestes a aprovar uma resolução que busca incentivar, facilitar e acelerar o aborto em crianças e adolescentes vítimas de estupro. O texto, obtido com exclusividade pela Gazeta do Povo, contém uma série de orientações para que, no momento de atender uma menina nessa situação, profissionais de saúde a convençam de que o melhor a fazer seria abortar e não manter a gravidez e preservar a vida em formação.
Ao tratar dos procedimentos para o atendimento a crianças e adolescentes abusadas, a minuta estabelece um rito célere. O aborto poderia ocorrer mesmo que os pais da criança abusada sejam contra ou nem sequer saibam do procedimento. Também poderia ser feito independentemente do tempo de vida do feto, abarcando assim gestações avançadas, em que o procedimento exige o parto, precedido ou não da morte do bebê dentro do útero.
Por fim, o texto obriga os hospitais a manter em seus quadros médicos que aceitem realizar o aborto em meninas, em qualquer fase da gestação, afastando da equipe de atendimentos dessas meninas aqueles que invocarem o direito de objeção de consciência. Esses e outros pontos da proposta serão detalhados e discutidos por especialistas numa série de reportagens da Gazeta do Povo.
A minuta da resolução, subscrita pela atual presidente do Conanda, Marina de Pol Poniwas, foi enviada para os integrantes do órgão no dia 17 de outubro e tem previsão de ser votada na assembleia marcada para os próximos dias 6 e 7 de novembro. Se o texto for aprovado, ele terá força normativa, isto é, deverá ser seguido pelos serviços de saúde e instituições que atendem crianças vítimas de abuso, como conselhos tutelares, polícias, Ministério Público e Judiciário.
Diferentemente de outras resoluções do Conanda, a minuta da resolução não foi colocada em consulta pública, para recebimento de sugestões ou críticas, como outras propostas normativas do órgão, que ficam disponíveis na internet para conhecimento do público em geral.
Atualmente, compõem o conselho 23 representantes, titulares ou suplentes, de entidades civis (ONGs, associações de classe, centrais sindicais, movimentos sociais, institutos de pesquisa, etc.) e representantes do governo (servidores ou funcionários comissionados dos ministérios da Educação, Casa Civil, Fazenda, Desenvolvimento Social, Saúde, Trabalho, Justiça, Cultura, Igualdade Racial, Indígenas, Planejamento, Secretaria-Geral da Presidência e Esporte).
A tendência, apurou a reportagem, é de aprovação da resolução, principalmente por impulso dos representantes da sociedade civil – muitos militam em favor da ampliação das hipóteses de aborto –, embora integrantes do governo temam um desgaste político. Eles tinham até esta quinta (31) para apresentarem sugestões de mudança ao texto proposto.
O Conanda foi procurado para esclarecer o motivo da não divulgação da proposta de resolução para consulta pública. Também foi questionado sobre pontos específicos e controversos da minuta. Por escrito, o órgão confirmou que “estuda atualmente proposta de resolução voltada para a garantia do atendimento de crianças e adolescentes vítimas estupro”.
Afirmou que ainda não possui “minuta consolidada de resolução, pois trata-se de conteúdo ainda em discussão interna por parte dos conselheiros, em diálogo com outras instituições e com especialistas”. “Assim, não é possível tratar do mérito a respeito de fragmentos das discussões ainda não consolidadas em um texto final”, afirmou, sobre seis questionamentos feitos pela reportagem sobre o conteúdo da minuta de resolução.
Para analisar as normas propostas pelo Conanda, essa reportagem consultou advogados, psicólogos, médicos e estudiosos com conhecimento e experiência na proteção da infância com perspectiva “pró-vida”, ou seja, que defende a preservação da vida do feto. Eles advogam, nesses casos, em favor da doação do bebê, caso a menina não queira ter e criar o(a) filho(a) fruto do abuso.
Muitos desses entrevistados reconhecem a permissão legal do aborto em crianças abusadas, em razão dos riscos, sofrimentos e adversidades enfrentadas por essas crianças e adolescentes. Ou seja, os impactos em sua saúde física, mental e psicológica, bem como o constrangimento social e os dilemas familiares que podem vivenciar se decidirem levar a cabo a gravidez para dar à luz – na maioria dos casos, os dados revelam que as gestações são fruto de abusos sexuais dentro de casa, praticados por pais, padrastos, tios ou até irmãos.
Em razão da delicadeza do tema, alguns especialistas consultados optaram por não se manifestar publicamente, inclusive por receio de represálias do governo ou do movimento pró-aborto. Outros aceitaram comentar abertamente algumas das regras propostas pelo Conanda.
Contemplamos também a posição do Conanda e do Ministério da Saúde sobre o assunto.
Incentivo ao aborto
A proposta tem como um dos pilares a “prioridade absoluta no acesso ao serviço do aborto legal”. A ideia aqui é eliminar todas as barreiras para a interrupção da gravidez, para que ocorra “da forma mais célere possível”, daí a dispensa de boletim de ocorrência e autorização judicial.
Mas além disso, lidos em conjunto, vários dispositivos apontam para o favorecimento do aborto. Subentendido no texto está a premissa de que essa opção atende ao melhor interesse da criança ou adolescente que engravidou em decorrência de um estupro.
Atualmente, no Brasil, mesmo em casos em que a relação sexual tenha ocorrido com um suposto consentimento ou num pretenso “relacionamento amoroso”, é considerado estupro e crime qualquer conjunção carnal ou ato libidinoso com alguém menor de 14 anos. Assim, mesmo que uma criança ou adolescente até essa idade não tenha sido forçada fisicamente a fazer sexo, o abuso é presumido, conforme jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
A proposta de resolução do Conanda parte desse entendimento, mas avança no sentido de incentivar o aborto. Um dos artigos diz que a informação sobre a interrupção da gestação deve ser fornecida para a criança ou adolescente de forma “imparcial”. Mas, num outro artigo, diz que “as informações sobre a continuidade da gestação deverão ter por perspectiva o fato de que gravidezes de crianças e adolescentes são gestações de alto risco”.
O obstetra e ginecologista Raphael Câmara, referência na área de gestações de risco, concorda com a premissa do Conanda de que, em crianças e adolescentes, a gravidez traz mais risco à saúde que o parto. Mas ressalva que um acompanhamento médico adequado minimiza esse risco – a oferta de um pré-natal apropriado é ignorada na proposta de resolução do Conanda.
“Numa criança ou adolescente, de fato o parto é mais perigoso que o aborto. Mas se for nessa lógica, mulher nenhuma pode engravidar. O maior risco de vida para a mulher, qualquer mulher, ocorre no momento do parto. A gravidez acima dos 35 anos de idade também é de risco. Mas uma garota de 13 anos tem risco de morrer muito menor que uma de 40”, diz.
Em relação ao pré-natal, a minuta da resolução busca impedir que a criança ou adolescente seja encaminhada para esse tipo de atendimento caso opte pelo aborto. “A criança ou adolescente apenas deve ser encaminhada ao pré-natal caso a decisão livre e informada seja pela manutenção da gravidez. A inclusão no pré-natal de criança ou adolescente que manifesta o desejo de interrupção da gravidez constitui violência obstétrica e institucional”, diz o texto.
Para Raphael Câmara, trata-se de uma previsão ilegal. “Certamente é importante uma consulta com um obstetra”, diz o médico, seja para prosseguir com a gravidez ou para fazer o aborto. “Se a pessoa já está decidida a fazer um aborto quem vai fazer o aborto é um obstetra. Em teoria, ele tem dever de a consultar antes. Para explicar, etc.”
Para mostrar que gravidez na infância ou adolescência é um risco à vida e à saúde da gestante, a minuta de resolução cita dados no Brasil. Com base em registros do SUS, afirma que em 2023, seis menores de 14 anos e 129 adolescentes entre 15 e 19 anos “morreram de causas relacionadas ao ciclo gravídico puerperal”. O DataSUS registra que, no ano passado, nasceram 13.934 bebês de meninas com até 14 anos. Adolescentes com 15 a 19 anos deram à luz 289.093 bebês. Nos dois casos, os óbitos das mães ocorreram em 0,04% dos casos.
Na proposta de resolução a celeridade é tratada como um princípio geral a ser adotado. Um dos artigos estabelece que, assim que identificada a gravidez decorrente de violência sexual, o órgão ligado à proteção dos direitos da criança que primeiro receber o relato encaminhará a criança ou adolescente “direta e imediatamente” ao serviço de saúde para realizar o aborto.
A proposta de resolução prevê que a criança seja ouvida numa “escuta especializada”. Trata-se de uma entrevista, regulada pela lei, em que um profissional capacitado, integrante de um órgão da rede de proteção (como conselho tutelar, Defensoria ou Ministério Público), ouve o relato da criança em local apropriado, acolhedor e com privacidade.
A minuta de resolução avança, ao dispor que “durante a escuta especializada, os profissionais do SGD [Sistema de Garantia de Direitos] devem informar a criança ou adolescente sobre seus direitos sexuais e reprodutivos, incluindo o direito ao aborto legal, utilizando informações seguras e precisas, baseadas em evidências científicas e nas recomendações da OMS [Organização Mundial da Saúde]”.
Outra regra diz que os profissionais devem ser capacitados pelos órgãos de proteção da infância “com foco particular na eliminação de barreiras de acesso” ao aborto.
Vários pontos da minuta se baseiam em recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS). Em 2022, a agência internacional atualizou suas diretrizes sobre o aborto, justamente no sentido de eliminar os obstáculos para o aborto em todo o mundo.
Entre as barreiras, está a própria criminalização do procedimento – previsto no Código Penal brasileiro desde 1940 –, e bem como tempos de espera obrigatórios, exigência de aprovação por outras pessoas (como parceiros, membros da família ou instituições), além de limites sobre o período de gravidez em que um aborto pode ocorrer.
Seguindo essa lógica, o Conanda chega ao ponto de direcionar até mesmo como o Poder Judiciário deve analisar os casos de gravidez de menores resultante de estupro. A proposta de resolução afirma que essa apreciação seja feita “a partir do paradigma da proteção integral”.
Em seguida, explica o que é o conceito: “que reconhece a condição de sujeitos de direitos de crianças e adolescentes, abstendo-se de atos que deem prevalência à vontade dos pais ou responsáveis legais em detrimento da vontade manifestada pela criança ou adolescente, bem como de sua saúde e integridade psicológica”.
Para a advogada Andrea Hoffmann, presidente do Instituto Isabel, uma entidade pró-vida, em conjunto, as regras propostas do Conanda tendem a considerar o aborto a única opção da criança. “Fica clara uma obrigatoriedade de realização do aborto quando se tratar de menores”, diz ela.
“As consequências do aborto são extremamente maléficas do ponto de vista da saúde física e mental da mulheres, independentemente da idade em que se encontram. O Conanda deveria estar preocupado na condução da assistência psicossocial e encaminhamentos a serem dados a vítima e sua família e não no aborto pelo aborto”, critica.
Consultada para essa reportagem, a presidente do movimento Brasil Sem Aborto, Lenise Garcia, considerou o texto da proposta de resolução “claramente tendencioso” em favor do aborto. “Ele não traz, ou cita muito de passagem, as alternativas para a criança. Caberia colocar as possibilidades com relação à adoção. Não considera os prejuízos psicológicos que o próprio aborto pode trazer. O aborto é apresentado quase como a solução ideal para essas situações.”
O que dizem o Conanda e defensores do aborto em crianças vítimas de estupro
Procurado pela reportagem para esclarecer a elaboração e o teor da minuta de resolução, o Conanda afirmou que, conforme a lei que o criou, em 1991, é um órgão colegiado “de caráter deliberativo e controlador das políticas de promoção, proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente”.
“Uma das principais missões legais do Conselho é dispor sobre o atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violências sexual. O Conanda tem se debruçado ao longo dos anos a respeito das falhas e da ausência de serviços que garantam o atendimento de crianças vítimas de estupro”, afirmou, em resposta por escrito à reportagem, a secretária-executiva do órgão, Verena Martins.
“Conforme aponta um estudo feito pelo Unicef em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre 2021 e 2023 o Brasil teve 164.199 casos de violência sexual contra crianças e adolescentes. Para além do número alarmante, há ainda o problema da subnotificação: o levantamento cita uma pesquisa do Ipea que indica que apenas 8,5% dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes são reportados às autoridades policiais. Quando consideradas as vítimas entre 0 e 9 anos de idade, familiares e pessoas próximas são responsáveis por 68% dos casos de violência sexual”, disse ainda.
Dados oficiais coletados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), uma ONG dedicada ao estudo da criminalidade no país, confirma essa realidade. A mais recente edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública registra que, no ano passado, 83.988 pessoas foram vítimas de estupro. Desse total, 76% eram vulneráveis, ou seja, menores de 14 anos. 64% dos agressores de vítimas com idade entre 0 e 13 anos eram familiares e 22,4% eram conhecidos da família.
O Conanda foi questionado a respeito de seis pontos delicados da minuta de resolução, incluindo a probabilidade de indução da criança abusada ao aborto. O órgão optou por não comentar esse e outros pontos, sob a justificativa de que não haveria ainda uma “minuta consolidada de resolução”. Em referência ao documento obtido pela reportagem, com cópia enviada ao órgão, disse tratar-se “de conteúdo ainda em discussão interna por parte dos conselheiros, em diálogo com outras instituições e com especialistas”.
“Assim, não é possível tratar do mérito a respeito de fragmentos das discussões ainda não consolidadas em um texto final”, afirmou.
No texto da minuta, a proposta de resolução apresenta várias justificativas para a elaboração das normas. Cita normas da Constituição e do Estatuto da Criança e do Adolescente que garantem a elas direito à vida, saúde, dignidade, respeito, liberdade, convivência familiar e comunitária, além das novas recomendações da OMS em favor do direito ao aborto.
“A Organização Mundial da Saúde (OMS), em suas Diretrizes sobre cuidados no aborto, recomenda que o acesso à interrupção legal da gestação por crianças e adolescentes seja garantido independentemente da autorização de outra pessoa ou instituição, cabendo aos responsáveis legais apenas o oferecimento de suporte e fornecimento de informação imparcial, de modo que a decisão seja baseada nos valores e preferência da pessoa gestante e não condicionada a autorização de terceiros”, diz a minuta.
Em outros trechos, o documento destaca normas internacionais que buscam dar autonomia à criança e adolescente para decidir sobre o assunto, ainda que na ausência dos pais, bem como na eliminação das barreiras para o aborto, como o tempo de gestação. Essas e outras questões serão abordadas em maior profundidade nas próximas reportagens sobre a proposta.