O TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade) tem sido, nos últimos meses, assunto frequente de audiências e propostas no Congresso nacional. O tema ganha destaque no Legislativo em meio ao que especialistas veem como uma epidemia de diagnósticos do transtorno, especialmente entre crianças e adolescentes na idade escolar.
Em maio, a Câmara aprovou uma proposta que autoriza o Ministério da Saúde a incluir o metilfenidato – cujo nome comercial mais conhecido é o da Ritalina – na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename), lista dos medicamentos permitidos na rede de atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS). O metilfenidato costuma ser receitado para crianças e adolescentes diagnosticados com TDAH.
Em junho, a Comissão de Saúde da Câmara dos Deputados promoveu uma audiência pública para discutir o fornecimento de tratamento de pacientes com TDAH no Sistema Único de Saúde (SUS). A ideia tem sido encampada pelo deputado Zacharias Calil (União-GO), que é médico.
A aprovação do uso de metilfenidato e a possibilidade de facilitação do tratamento de TDAH via SUS preocupam especialistas, que veem uma tendência à patologização de jovens na idade escolar. Para profissionais das áreas de neuropsicologia, psiquiatria, pediatria e educação consultados pela Gazeta do Povo, há uma banalização perigosa dos diagnósticos de déficit de atenção, que tem feito proliferar o uso de psicoestimulantes entre crianças e adolescentes brasileiros.
Em uma pesquisa feita em 2022 com 43 estudantes do interior de São Paulo que tinham sido diagnosticados com TDAH, psicólogas constataram que apenas três deles realmente se enquadravam no diagnóstico quando submetidos a uma avaliação mais rigorosa da presença do transtorno.
Os especialistas fazem a ressalva de que há casos realmente graves, que merecem atenção especial, mas criticam a recomendação excessiva, nas escolas, de avaliações neuropsicológicas para quem tem dificuldade de concentração nas aulas ou comportamento agitado. A tendência, segundo eles, resulta de expectativas equivocadas sobre os jovens, falta de paciência dos próprios pais e educadores e dificuldade de lidar com o processo de amadurecimento. A onda de patologização e medicalização, para eles, pode acabar mutilando o potencial dos estudantes e limitando-os na capacidade de autodomínio sem apoio dos remédios.
Simone Fuzaro, mestre em Educação pela PUC-SP, lamenta que um número enorme de crianças sem quadro verdadeiro de TDAH, que poderiam resolver suas dificuldades criando “a competência de atenção e de autodomínio corporal”, esteja recebendo diagnósticos e tomando remédios como a Ritalina. Os resultados, diz ela, vão aparecer no curto prazo, mas em detrimento da chance de um desenvolvimento autêntico da atenção da criança a médio e longo prazo.
“As crianças estão sendo roubadas naquilo que é mais precioso, que é o potencial que elas têm. Elas têm a potência da vontade, mas isso só vai funcionar, só vai virar ato, se a criança for educada, se passar por um processo de forja”, afirma.
Além da onda de patologização – isto é, a falsa atribuição de status patológico a situações comuns –, a epidemia de diagnósticos é reforçada por um problema bastante real: os fatores socioculturais que geram comportamentos hiperativos com os quais pais e professores não sabem lidar. Alguns hábitos próprios da sociedade contemporânea têm prejudicado o desenvolvimento neurológico de crianças e tornado mais complexa a zona cinzenta que separa o que é um problema biológico do que é social.
Ana Rita Dias Resende, médica psiquiatra, diz que há hoje “elementos culturais que favorecem a epigenética envolvida nestes transtornos do neurodesenvolvimento”. O principal deles é o abuso de telas.
“Chegando à idade escolar e adolescência, os pais já não conseguem ter tanto controle no uso de telas e acabam buscando ajuda psicoterápica e psiquiátrica. Nos cenários em que temos salas de aula com uma grande quantidade de alunos, aqueles com comportamento mais hiperativo, às vezes opositor e desafiador, acabam sendo encaminhados para avaliação, já que os professores não conseguem ensinar de forma mais individualizada e, em casa, os pais já não conseguem conter o comportamento e suspender as telas”, observa a psiquiatra. Ela também destaca “o início cada vez mais precoce de uso de substâncias psicoativas como maconha, que também causam alterações cognitivas e comportamentais”.
Não há números oficiais sobre TDAH no Brasil – em primeiro lugar, porque há pouca unanimidade entre os médicos sobre a própria legitimidade de grande parte dos diagnósticos. A Associação Brasileira do Déficit de Atenção (ABDA) estima que cerca de 2 milhões de adultos tenham TDAH no país.
Sobre a prevalência do transtorno entre crianças e adolescentes, não há um estudo sobre a população brasileira em geral feito nos últimos anos. Um número citado com frequência é o de que cerca de 5% das crianças teriam TDAH. Ele se baseia em uma estimativa feita para o mundo inteiro pela American Psychiatric Association (APA), que considerou o dado consistente para diferentes contextos culturais.
Diagnóstico de TDAH é baseado em critérios duvidosos, dizem especialistas
Em breve, o Brasil poderá passar a contar com estatísticas oficiais sobre TDAH, já que, em dezembro de 2023, a Câmara aprovou um projeto de lei que exige a inclusão nos censos demográficos de questionamentos específicos sobre pessoas com o transtorno. A proposta ainda será avaliada no Senado. Mesmo que for aprovada, a validade dos dados obtidos no censo não seria unanimidade dentro da classe médica.
Maria Aparecida Affonso Moysés, doutora em Medicina e professora de Pediatria da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), diz que as próprias avaliações que conduzem ao diagnóstico do TDAH são questionadas na medicina. “Existem crianças com problemas? Existem. Mas TDAH é um diagnóstico altamente questionado. Há testes de TDAH que buscam o defeito. Se olhar, por exemplo, o teste para fazer o diagnóstico de TDAH em crianças, que é o SNAP-IV, você vai ver que é quase impossível não pontuar”, observa.
No SNAP-IV, a pontuação que leva ao diagnóstico depende da resposta a itens excessivamente abertos a interpretações subjetivas, na visão da especialista. Deve-se responder, por exemplo, em que grau a criança “Não consegue prestar muita atenção a detalhes ou comete erros por descuido nos trabalhos da escola ou tarefas” ou “Não segue instruções até o fim e não termina deveres de escola, tarefas ou obrigações”.
Para Vitor Haase, doutor em Psicologia Médica pela Universidade de Munique e autor do livro “Neuropsicologia do Desenvolvimento: Infância e Adolescência”, há um crescente número de diagnósticos feitos de maneira superficial. “Atualmente, o pessoal usa muito a nosologia psiquiátrica [mera descrição das doenças], com o sistema do DSM [a sigla vem do inglês ‘Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders’ – Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais], com um checklist de sintomas”, diz.
Isso, segundo Haase, leva com frequência a diagnósticos equivocados. “A gente tem que entender qual é o conflito, o drama, o problema da pessoa – se é um problema relacionado com ansiedade, ou com a dificuldade de postergação da gratificação”, observa. Para ele, é importante fazer um diagnóstico baseado nas circunstâncias de cada pessoa – o que alguns especialistas chamam de “diagnóstico fenomenológico”.
“O diagnóstico fenomenológico depende de empatia do médico, do psicólogo, de procurar se colocar no lugar da pessoa, de entender qual é o contexto em que a criança está vivendo, a família, qual é o significado que aquelas coisas têm para ela, e assim por diante. Isso pode evitar um diagnóstico errado, com certa pressa em indicar medicações – um automatismo do tipo ‘se tem tais sintomas, use tal remédio'”, diz.
Haase considera o próprio nome do TDAH enganoso. Para ele, o problema não é de atenção, mas de impulsividade.
“É um nome completamente errado. Não se trata de um transtorno de atenção. A criança que não presta atenção na escola consegue prestar uma atenção fantástica no videogame. Por quê? Porque o videogame é imediatamente gratificante. Não é um problema com atenção, é um problema com a habilidade de postergar a recompensa, com a impulsividade”, explica. “É uma dificuldade que a pessoa tem de fazer um escambo, de abrir mão de um prazer e uma recompensa imediata por uma recompensa maior, porém abstrata e projetada no futuro, que é o que acontece, por exemplo, na escola”, complementa.
Reações adversas podem ser graves, e há incerteza sobre efeitos a longo prazo
No Senado, em novembro do ano passado, a Comissão de Assuntos Sociais (CAS) promoveu uma audiência pública sobre o excesso de diagnósticos de TDAH entre crianças, em que uma representante do Conselho Federal de Psicologia (CFP) alertou para algumas possíveis reações adversas do uso abusivo de metilfenidato, como dependência, ansiedade, diminuição do sono e do apetite e problemas cardiovasculares.
Maria Aparecida Moysés, que é militante do Despatologiza – Movimento pela Despatologização da Vida, ressalta que essas reações costumam ser negligenciadas pelos pais, e que pode haver outras. Ela menciona, por exemplo, uma reação chamada “efeito zumbi”, que tende a tornar as crianças mais apáticas. “É uma reação adversa desse tratamento, mas ao mesmo tempo é para isso que é usado esse medicamento. Ou seja, não é um efeito terapêutico, é uma reação adversa que se busca: parar de incomodar, ficar quieto, obedecer.”
A professora cita ainda alguns estudos recentes “que têm encontrado que o uso crônico prolongado, de mais de 36 meses, de substâncias psicoativas pode provocar alterações anatômicas irreversíveis no sistema nervoso”. “A neurologista Nancy Andreasen, em uma pesquisa com pacientes psicóticos que receberam antipsicóticos o tempo todo por mais de 36 meses, encontrou, fazendo ressonância, uma atrofia do lobo frontal em pacientes. E ela diz: ‘é como se tivéssemos feito uma lobotomia’. A substância pode provocar essas alterações irreversíveis. E isso não é divulgado”, comenta.
Haase também demonstra preocupação com os efeitos a longo prazo das substâncias usadas para coibir o TDAH. “Podem não ter efeitos colaterais a curto prazo que sejam muito complicados. Mas a gente não sabe muito bem a longo prazo quais são os efeitos dessas medicações. Elas podem mexer com os mecanismos de regulação gênica, e a gente não sabe o que vai acontecer daqui 20, 30, 40 anos. Então, numa intervenção para TDAH, a primeira escolha não deve ser a medicação, e sim as intervenções psicossociais”, diz.
Para Maria Aparecida, há dois lados negativos, para crianças, “do processo de medicalização e patologização da vida”: além dos efeitos ruins para as crianças que usam os medicamentos sem necessidade, aquelas crianças que experimentam situações mais graves tendem a ser tratadas sem a preocupação especial que merecem, porque tiveram suas situações equiparadas às das outras.
“Você não consegue nem mesmo identificar quem realmente tem o problema e precisa de uma atenção especial. Porque se perde. Então, você patologiza e estigmatiza a imensa maioria, o que já é muito cruel. E também é cruel porque você deixa de acolher e dar atenção para aqueles que realmente têm um problema”, observa ela.
Fatores educacionais não podem ser negligenciados
Os especialistas também consideram que, em muitos casos, os remédios acabam servindo como muleta para a omissão de educadores e pais em alguns aspectos da formação da criança.
Simone Fuzaro vê como uma das causas do excesso de diagnósticos de TDAH “a dificuldade dos pais de conseguirem oferecer uma disciplina saudável para os filhos”.
“Muitos diagnósticos de TDAH acabam acontecendo porque são crianças que não se adequam ao ambiente escolar, que não conseguem parar sentadas. A criança pega o lápis e fica batendo com o lápis na mesa, ou brincando de lutinha e não sei o quê, olhando para outro lado enquanto o professor fala… Mas, quando você levanta o histórico, normalmente são crianças que vivem num ambiente muito permissivo, de pouca exigência, em que os pais acabam tomando como natural que a criança não pare sentada, não exigem progressivamente que a criança tenha um comportamento mais adequado”, explica.
Fuzaro considera que muitos pais são reticentes em dar orientações necessárias aos filhos porque confundem o exercício de autoridade com autoritarismo. “A gente sabe que tem uma crise de autoridade muito grande. As pessoas pensam muito em autoritarismo quando a gente fala de autoridade, confundem isso, e acabam não conseguindo ajudar a sua criança a alcançar um potencial possível, a desenvolver o potencial que tem, a chegar a um resultado possível de concentração, de atenção”, observa.
Maria Aparecida Affonso Moysés diz que o diagnóstico do TDAH acaba banalizando a via da medicalização e dispensando o trabalho mais árduo da solução de conflitos. “Quando eu coloco um rótulo de um transtorno, seja de TDAH, de TEA [transtorno de espectro autista], de TOD [transtorno de oposição desafiante] – qualquer um deles, na verdade –, eu silencio o conflito, acalmo consciências, e é ‘a Mariazinha que tem um problema’. ‘Mariazinha tem um transtorno e vai resolver com este remedinho’ – que não é bem um remedinho, é uma substância psicoativa, psicoestimulante, com o mesmo mecanismo de ação que as anfetaminas, que são tão condenadas em adultos. E a gente dá para a criança! É o mesmo mecanismo de ação que a cocaína. Isso está sendo dado para crianças cada vez mais jovens. Em nome de quê? Para que elas não incomodem com seus questionamentos, com a sua não aceitação de padrões?”, questiona.
Em sua experiência como educadora, Fuzaro identificou que, com frequência, hábitos vistos como inofensivos pelos pais estão na raiz do problema de atenção dos filhos. Ela costuma recomendar aos pais que, antes de testar para TDAH uma criança desatenta, tomem uma atitude simples: coibir o uso excessivo de telas.
“Enquanto a criança está olhando para a tela, está hipnotizada, só enxerga aquele desenho… É uma coisa passiva, mas que ao mesmo tempo gera uma atividade neurológica muito grande, e a criança fica muito agitada. O que eu sempre aconselho tanto a pais como professores de crianças é que diminuam o tempo de tela. Mas que diminuam radicalmente. E, com isso, a gente nota um aumento na capacidade de concentração e de aprendizagem. Isso é uma coisa que precisa muito ser considerada hoje”, alerta.
Outro ponto importante, segundo Fuzaro, é “a dificuldade que estamos tendo, como sociedade, de lidar com processos”. “Processos são demorados. A criança é agitada, curiosa, ativa… Criança é movimento, porque está na fase do desenvolvimento. Ela precisa se movimentar, precisa se mexer, tocar, cheirar, precisa pôr na boca. E eu não estou dizendo, com isso, que, porque ela precisa, a gente não vá dando alguns contornos… Mas nós precisamos ter paciência, dar o contorno adequado”, explica. “Como nós não estamos mais compreendendo o nosso papel de adulto para esse tipo de desenvolvimento infantil, nós acabamos gerando, muitas vezes, estes quadros que ficam entre uma patologia real, um déficit neurológico, e uma patologia socialmente gerada.”
Para Vitor Haase, há ainda outro problema, de ordem cultural: a tendência ao hedonismo, que torna mais limitada a nossa paciência diante do sofrimento, e mais frequente o recurso aos remédios. “As pessoas não suportam mais ansiedade, tristeza. Vemos gente que parece estar muito bem na publicidade, gente feliz nas redes sociais, só gente alegre, e as pessoas desenvolvem uma percepção de que qualquer sentimento, qualquer emoção negativa é uma doença”, diz.
Fuzaro garante que, quando algumas recomendações básicas são seguidas com paciência, os resultados são visíveis e reduzem a patologização. “A gente fica lutando com a escola para mostrar que, se a criança está com dificuldade de atenção, a gente pode trabalhar a atenção dela. Podemos colocar um objetivo claro para essa criança. E, muitas vezes, a gente consegue [atingir o objetivo]. Vejo casos de crianças de oito, nove anos, que não conseguiam se sentar para fazer lição de casa e, hoje, depois de um trabalho junto com a família, conseguem ficar períodos de uma hora sentados fazendo lição de casa. E terminam sem ter que fazer intervalos. A gente foi treinando isso aos poucos”, conta.
Para ela, “o verdadeiro educador quer ver a criança desenvolver as suas capacidades”. “Não basta, para ele, dar um sossega-leão. A criança pode ficar quietinha, aprender mais ou menos, mas vai depender de remédio a vida inteira. Não que o remédio não possa ser usado em nenhum caso. Mas deveria ser bem menos usado do que é hoje”, diz.