Dois acontecimentos recentes trouxeram à tona questionamentos sobre como funciona o mecanismo que escolhe qual ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) deve ficar responsável por uma ação. O presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, barrou uma auditoria externa no sistema de distribuição de processos do STF, marcada para setembro. No mesmo mês, o ministro Dias Toffoli negou uma ação do Partido Progressista (PP) que contestava a escolha de Alexandre de Moraes para a relatoria de processo de investigação do coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do ex-presidente Bolsonaro.
O sigilo sobre esse sistema de sorteio no STF chama a atenção. Caso fosse provada a manipulação na escolha de relatorias de processos – em que ministros pudessem escolher as ações que vão relatar – haveria uma violação do direito dos cidadãos de julgamento justo e imparcial, previsto na Constituição. Por isso, juristas apontam que a falta de transparência no sistema de distribuição de processos na Corte pode representar um grave risco à democracia brasileira.
Recuo de Barroso fere princípio da transparência, avaliam juristas
Inicialmente, Barroso havia aprovado o pedido do portal UOL para que uma equipe de especialistas em tecnologia verificasse o funcionamento do sistema de distribuições de processos no STF. Após todo o trâmite administrativo e a 72 horas para a data combinada, Barroso suspendeu a auditoria. O motivo do recuo seria porque a ação poderia expor o sistema a ataques de hackers.
Está previsto que o sistema do STF realize um sorteio para definir qual ministro será responsável por processos que chegam à Corte, assim como todos os tribunais no país. O princípio constitucional da transparência exigiria que a Corte estivesse aberta a explicar como isso funciona, ao ser questionada.
“A distribuição transparente evita que juízes sejam escolhidos para julgar casos de pessoas específicas. Evita o uso do direito como instrumento de vingança, não de justiça”, destaca André Marsiglia, advogado especialista em liberdade de expressão. Ele ressalta que a falta de transparência no processo de distribuição pode beneficiar ou prejudicar indivíduos, especialmente se o juiz encarregado já tiver opiniões pré-concebidas sobre o réu ou suas convicções.
Para Marsiglia, está claro que “a proteção de dados e a privacidade são importantes, mas não mais do que a transparência ao acesso das informações de interesse público à sociedade”. O advogado ainda pondera que, caso haja manipulação do sorteio e distribuição de processos a juízes, o princípio constitucional do juiz natural estaria sendo violado.
Moraes tem assumido uma série de inquéritos sem sorteio
O princípio do juiz natural tenta assegurar que os cidadãos tenham seus casos julgados por um juiz imparcial, determinado por sorteio. A indicação direta de um juiz poderia abrir espaço para que essa escolha atendesse a conveniências políticas. Dessa forma, aumentariam o risco de interesses externos interferirem nas decisões judiciais, violando o direito a um julgamento justo.
Com base em questionamentos semelhantes, o Partido Progressista (PP) apresentou uma ADPF no STF, em março deste ano. Entre as várias alegações de ilegalidades feitas pelo partido, uma das principais é a designação do ministro Alexandre de Moraes como relator da PET 10.405. Essa ação investiga a suposta fraude de cartões de vacina cometida pelo Coronel Mauro Cid, ex-assessor de Bolsonaro. O partido argumenta que essa investigação teria origem no Inquérito das Milícias Digitais.
Moraes assumiu a relatoria do caso com base na alegação de que a possível fraude estaria conectada não apenas ao Inquérito das Milícias Digitais, mas também ao Inquérito das Fake News. Como ambos estavam sob sua responsabilidade, o ministro acabou ficando também com a relatoria da petição envolvendo Mauro Cid.
“O que estamos vendo é que todo tipo de fato que envolva o mandato anterior da presidência da República, servidores e eventuais apoiadores, está sendo conectado inicialmente com o famoso Inquérito das Fake News”, aponta Bruno Gimenes, advogado e mestre em ciência jurídica pela UEM. Ele destaca que essa conexão tem levado à concentração desses casos nas mãos do ministro Alexandre de Moraes, sem sorteio para a avaliação de outro ministro.
Gimenes exemplifica: “uma eventual fraude no cartão de vacina praticada por Mauro Cid estaria linkada a uma concepção transcendente de mentiras praticadas pelo governo anterior sobre vacinas. E, se tratando de mentiras, elas devem ser investigadas, por conexão, ao inquérito inicial das Fake News”. Segundo o advogado, o STF estaria utilizando uma argumentação forçada para manter esses casos sob sua jurisdição, e, principalmente, sob o mesmo gabinete.
Toffoli alega que Moraes poderia ser acionado para decidir sobre sua própria relatoria
O inquérito das Fake News, aberto para investigar “fake news” e “ataques” contra ministros do STF, foi aberto em 2019 após o uso de uma estratégia inusitada. O então presidente do STF, Dias Toffoli, usou uma regra do regimento interno, o artigo 43, que permite à Corte a abertura de inquéritos em caso de ataques às dependências físicas do tribunal. O ministro ampliou a interpretação do artigo 43 incluindo a possibilidade de o STF investigar críticas à Corte feitas em qualquer espaço (incluindo a internet), o que não está previsto na Constituição e nem segue o devido processo legal.
No início do inquérito, Toffoli designou o ministro Alexandre de Moraes como relator do caso, sem realizar o sorteio tradicional. Os primeiros alvos do inquérito foram o portal O Antagonista e a revista Crusoé, após publicarem uma reportagem que envolvia Toffoli. Outros inquéritos foram abertos, também designados a Moraes, com novos investigados, como, o canal Terça Livre, comandado por Allan dos Santos, o jornalista Oswaldo Eustáquio, entre outros. Diversos jornalistas, parlamentares e influenciadores, especialmente de direita, também sofreram censura no âmbito desses inquéritos. Pela sua extensão e tempo de duração sem conclusões (aberto há mais de cinco anos), o inquérito das fake news passou a ser chamado de “Inquérito do Fim do Mundo” por Marco Aurélio Mello, ministro aposentado da Corte.
O mesmo ministro Toffoli, responsável pela abertura do inquérito das Fake News e alvo da reportagem do Antagonista e da Crusoé, foi responsável por julgar a ADPF do PP, que solicitava a anulação das decisões tomadas por Alexandre de Moraes na ação contra Mauro Cid. Dias Toffoli rejeitou o pedido, afirmando que a ADPF era uma tentativa indevida de recurso e que o STF já havia explicitamente rechaçado esse tipo de contestação.
Na visão de Toffoli, a possibilidade de questionar a relatoria e os atos de Moraes sempre existiu por meio de outros mecanismos processuais, como a apresentação de um mandado de segurança, caso houvesse indícios de ilegalidade. O que o ministro não explicita é que o julgador desses recursos seria o próprio Moraes.
“Uma das alegações do PP é de que não se sabe nem o que de fato está acontecendo dentro do processo, então, como recorrer? Só há acesso a decisões externas como mandados de busca e apreensão, prisões e censuras”, afirma Bruno Gimenes. Ele acrescenta que, devido ao sigilo dos processos e ao esgotamento de prazos para recursos, seria praticamente impossível para o partido contestar as decisões de forma eficaz.
“Essas interpretações do STF aumentam, convenientemente, o poder do STF sobre esses processos e acaba, de certa forma, possibilitando que o próprio Supremo controle o resultado último do processo”, conclui Gimenes.