A história da revista Vice é um verdadeiro manual sobre como destruir uma empresa transformando-a num playground para pirralhos militantes de esquerda.
Criada em 1994 por três amigos canadenses egressos do movimento punk, a publicação ficou conhecida inicialmente por seu estilo transgressivo e irreverente.
Com uma linha editorial baseada em música, moda e comportamentos alternativos, o veículo adentrou os anos 2000 como um captador das tendências emergentes de uma sociedade impactada pelo advento da internet.
Mas a fase de ouro da Vice começou mesmo em meados daquela década, quando a revista passou a investir em reportagens internacionais que mudaram a forma como esse tipo de conteúdo é produzido – e fizeram a companhia crescer até se tornar um grande conglomerado de comunicação, com sede nos EUA.
No entanto, num determinado momento, as matérias interessantes sobre cartéis globais de drogas ou visitas de ocidentais à fechada Coreia do Norte passaram a perder espaço para materiais com títulos como “12 argumentos que todo negacionista do clima usa (e como refutá-los)”.
Além de mais recorrentes, esses assuntos ganharam um tratamento radical e combativo. “Toda a Masculinidade é Tóxica”, “Eutanásia: a hora da compaixão não é referendável”, “A quarentena me ajudou a entender melhor minha identidade de gênero”, “50 exemplos para mostrar aos parentes que ainda não entenderam o privilégio branco” são apenas alguns exemplos da reforma conduzida por uma equipe de jovens que deveriam atualizar o grupo.
Não demorou muito e a Vice acabou se tornando sinônimo de lacração forçada, uma caricatura da ideologia woke ridicularizada inclusive por setores da própria da esquerda. Pior: se diluiu no establishment politicamente correto que um dia repudiou.
O resultado dessa guinada conceitual foi uma rejeição de seu público original, a fuga dos anunciantes e um tardio pedido de falência, no início do ano passado.
Grandes corporações de mídia viram na Vice uma “nova MTV”
Voltando no tempo, é possível dizer que o “pulo do gato” da empresa aconteceu em 2006, quando suas reportagens realizadas mundo afora passaram a ser concebidas para diferentes plataformas de mídia.
Além de combinar texto escrito com informação audiovisual, as matérias preservavam a linguagem espontânea da revista e, acima de tudo, mostravam o “lado B” dos assuntos abordados pelo restante da imprensa (mais tarde, mesmo redes de TV tradicionais como ABC e CBS demonstrariam ter absorvido algum tipo de influência desse modelo).
Graças à Vice, o público viu, pela primeira vez, o gigantesco festival de música, dança e acrobacias promovido pela ditadura da Coreia do Norte para reforçar sua propaganda nacional. Ou conheceu a rotina diária dos jovens soldados do Talibã no Afeganistão – armados até os dentes e entediados no meio do deserto.
Essas e outras histórias fizeram tanto sucesso, e atraíram tantos anunciantes, que grupos como Time Warner, Fox e Disney tentaram, sem sucesso, comprar a companhia. Ainda assim, tornaram-se investidores de seus projetos, acreditando estar diante de uma “nova MTV”.
Em 2017, a Vice Media chegou a ser composta por um canal de tevê paga, agência de publicidade, gravadora, casa noturna e diversos sites (um deles, inclusive, produzido no Brasil). Seu valor de mercado, à época, foi estimado em US$ 5,7 bilhões (R$ 32 bilhões, na cotação atual).
Cinco anos depois, no entanto, o conglomerado decretou falência, com uma dívida de US$ 474 milhões (R$ 2,6 bilhões). E, ainda em 2023, um consórcio liderado pelo fundo de investimento Fortress assumiu suas operações por US$ 350 milhões (R$ 1,9 bilhão).
Em fevereiro deste ano, veio outro baque: após quatro rodadas de demissões, o grupo ficou limitado a um efetivo de 900 funcionários. Nos tempos áureos, eram mais de 3 mil.
Executivo reconhece que entregou o conteúdo para jovens despreparados
A exemplo de outros importantes veículos de mídia, a Vice entrou em crise por não conseguir se adaptar às rápidas e sucessivas mudanças ocorridas nos meios digitais. Mas, em seu caso específico, um outro componente contribuiu para a derrocada – a já citada adesão radical ao identitarismo e à correção política.
Quem afirma é a figura-símbolo da empresa, o jornalista Shane Smith, cofundador da revista com Gavin McInnes e Suroosh Avi.
Em uma entrevista concedida no início do mês ao podcast do produtor musical Rick Rubin, ele reconhece que se dedicou demais aos negócios e deixou a criação sob responsabilidade de uma equipe despreparada.
“Sempre dissemos que, a cada cinco anos, entregaríamos a Vice aos estagiários. E assim a companhia começou a entrar nessa era estranha e woke. Era como se nosso público tivesse mudado dos millenials para a Geração Z. Aqueles jovens estavam escrevendo para si mesmos”, diz.
Ainda segundo Smith, ele muitas vezes questionou a relevância dos conteúdos publicados – porém era estimulado pelos colegas a acreditar que estava velho demais para entender os interesses das novas gerações. “O antigo público, incluindo eu, se perguntava: ‘O que estamos fazendo aqui?’.”
Em outro podcast, apresentado pelo comentarista libertário Joe Rogan, o executivo afirmou que, de certa forma, já havia previsto o futuro desastroso da Vice. “Uma vez eu falei: ‘Vamos ficar muito grandes e nos tornar o que estamos enfrentando. Vamos nos tornar o status quo e levar uma surra.”
Cofundador da Vice criou grupo acusado de organizar a invasão ao Capitólio
No auge criativo da Vice, os três fundadores desempenhavam papeis bem distintos.
Suroosh Alvi, o amigo mais discreto, concentrou-se no jornalismo. Ainda é ligado à empresa, porém não participa da gestão cotidiana e das decisões corporativas. Prefere se dedicar à produção de documentários investigativos (muitos deles premiados).
Gavin McInnes, um provocador nato, adicionava o elemento politicamente incorreto e sarcástico. Saiu da sociedade em 2008, alegando “diferenças criativas” e virou comentarista político com viés de direita. Anos depois, fundou a organização Proud Boys, acusada de divulgar o “nacionalismo branco” e promover a invasão do Capitólio, em 2021.
Já Shane Smith ficou com o papel de vendedor e negociador. Para muitos, ele é, ao mesmo tempo, o herói e o vilão da história da Vice.
Se por um lado Smith atraiu investimentos e espalhou a marca pelo mundo, por outro deu um péssimo exemplo recebendo salários astronômicos, delegando tarefas para pessoas incompetentes e gastando o dinheiro da empresa com todo tipo de regalia para si mesmo.
Em 2018, o jornalista deixou o cargo de CEO após ser “cancelado” por fazer vista grossas para casos de assédio moral e sexual supostamente ocorridos dentro da empresa. Quatro anos antes, no entanto, já havia vendido uma parte de suas ações equivalente a US$ 100 milhões (R$ 563 milhões).
A novidade é que Shane Smith está de volta ao dia a dia da Vice – porém no “chão de fábrica”. Assumiu uma função mais editorial e estreou, há duas semanas, um podcast de entrevistas com foco político.
Na entrevista para Rick Rubin, ele falou sobre o público que pretende atingir a partir de agora. “Acredito que há uma maioria silenciosa, de pessoas centristas, que não estão sendo atendidas”, disse Smith, tentando recuperar sua reputação de visionário.
Por enquanto, ele ainda é lembrado como o executivo excêntrico que entregou um império inteiro nas mãos de um punhado de garotos com piercings e cabelos coloridos.