Nenhum conceito geopolítico talvez tenha confundido tanto o pensamento estratégico internacional nas últimas duas décadas quanto o de BRICS. Formado pelas iniciais de Brasil, Rússia, Índia, China e, posteriormente, África do Sul, o termo foi cunhado em 2001 pelo economista Jim O´Neill, do banco Goldman Sachs, para agrupar os países emergentes que constituiriam, até 2050, os “pilares” de um novo sistema internacional.
Embora O´Neill se referisse apenas à trajetória econômica individual de países agrupados por características aparentemente similares, sem implicar qualquer articulação entre si, o então impressionante desempenho econômico desses países fez com que o termo se tornasse de uso corrente.
A partir de 2006, representantes dessas nações, embalados pela expectativa de forjar uma ordem multipolar na qual teriam mais recursos de poder e, consequentemente, agência, puseram-se a trabalhar a criação de uma plataforma coletiva de atuação. O BRICS seria, nesse contexto, porta-voz do processo de construção de uma ordem internacional mais solidária, representativa e simétrica, alternativa ao predomínio econômico-financeiro de Estados Unidos, União Europeia, G7 e FMI, sem, contudo, se constituir em uma aliança antiocidental.
No entanto, com o início da 16ª Reunião de Cúpula, em Kazan, Rússia, tornou-se claro que seus membros têm escassos objetivos comuns, o principal dos quais é uma ultrapassada e pouco construtiva retórica antiocidental. Para além do vazio discurso diplomático, o BRICS pouco avançou rumo a um programa de ação coletivo, capaz de oferecer uma plataforma concreta de proposições estratégicas ou, ainda, uma nova moldura teórica para negociações comerciais. Trata-se de frágil coalizão de barganha, quando não empreitada de conveniência. À exceção de seu Banco de Desenvolvimento, criado em 2014, que serviu de cabide de empregos com a indicação política da ex-presidente Dilma Rousseff à sua presidência, inexistem iniciativas que possam servir de apoio à ideia de atuação coletiva, como demonstram o conflito russo-ucraniano, a crise israelo-palestina, israelo-iraniana ou as eleições venezuelanas que Nicolás Maduro fraudou com a conivência de Lula e Celso Amorim.
Na prática, as enormes diferenças estruturais, de modelos de desenvolvimento, de prioridades de política externa e de concepção do papel do Estado não apenas tornaram limitadas as possibilidades de ação concertada, como também demonstram que o agrupamento se tornou um laboratório visando à construção de uma nova e antiliberal ordem mundial, a ser liderada pela China, sob o pavilhão da megainiciativa Cinturão e Rota (Belt and Road Initiative), que até 2023 aportou mais de US$ 1 trilhão em centenas de projetos (sobretudo de infraestrutura) em cinco continentes. Enquanto os Estados Unidos permanecem imersos em seu “isolacionismo esplêndido”, Pequim faz uso da oportunidade de reestruturar a ordem internacional de acordo com seus interesses, em cenário no qual o BRICS pode ser instrumental a seus propósitos.
A China valoriza o BRICS por três razões principais:
- como uma cobertura geopolítica para disfarçar suas ações unilaterais, as quais costumam acarretar mais custos e riscos;
- como instrumento para contra-arrestar o poder dos EUA, porém dentro de uma moldura de ação coletiva, supostamente contribuindo para melhorar a governança global;
- como um mecanismo para monitorar as ações estratégicas de seus adversários regionais, Rússia e Índia, enquanto promove seus interesses unilaterais junto aos demais membros do bloco (com ambições maiores em países de menor desenvolvimento relativo na Ásia Meridional e na África) e em outras regiões, particularmente nas dimensões econômica e comercial.
Esses fatores justificam, em considerável medida, a insistência de Pequim em favorecer o aumento indiscriminado, desde uma perspectiva de operacionalidade e aderência aos propósitos chineses, do número de integrantes dos BRICS. Em janeiro deste ano, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia e Irã aderiram ao grupo. A Arábia Saudita foi convidada, mas ainda não formalizou sua adesão. A Indonésia também recebeu convite para integrar o bloco, tendo, contudo, optado por preservar sua histórica postura de não-alinhamento, que poderia ser comprometida pelo ingresso. Outros 22 países, dentre os quais os colapsados Cuba, Bielorrússia, Nicarágua e Venezuela, pleiteiam adesão.
Essa expansão deverá ser um dos principais itens da pauta da reunião de Kazan, que possivelmente decidirá, ainda, sobre a adesão do grupo fundamentalista islâmico Talibã, que retornou ao poder no Afeganistão em 2021, após mais de vinte anos de insurgência contra o governo de Cabul (apoiado pelos Estados Unidos). Conhecido pelas sistemáticas violações de direitos humanos, civis e políticos, o grupo também se notabiliza por prestar apoio logístico, financeiro e territorial a grupos terroristas, como a Al Qaeda.
Sob o ângulo estratégico, o que esperar de um grupo cujos membros apresentam desconfianças mútuas, sobretudo em relação a ambições geopolíticas no espaço euroasiático?
A China não tenciona fomentar o surgimento de um concorrente regional, razão pela qual não apoia o pleito indiano a um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU (e, consequentemente, não endossará a candidatura brasileira).
A Rússia segue o mesmo raciocínio, porém, conquanto defenda oficialmente a reforma e a ampliação do CSNU, o faz em razão do baixo custo em termos de capital diplomático, por não considerar reais quaisquer possibilidades de reforma do órgão no curto e médio prazos, visto que tal ampliação teria consequências indesejadas para sua liberdade de movimento estratégico, sobretudo no “Exterior Próximo”, jargão diplomático russo para designar o espaço geoestratégico correspondente às ex-repúblicas soviéticas na Ásia Central, no Cáucaso e na Europa Oriental.
A Índia veta a entrada chinesa no Fórum Índia-Brasil-África do Sul, sob o argumento de que se trata de uma coalizão de países democráticos, posição, aliás, convergente, até o momento, com a brasileira.
A China não necessita e não deseja harmonizar suas políticas com os interesses dos demais membros do BRICS, e evita firmar alianças que tolham sua liberdade de ação, enquanto vai forjando parcerias com nações de tendências autoritárias ou que enxergam no mero aumento dos fluxos de comércio bilateral a única variável a ser mensurada como parâmetro de política exterior, como se esse fosse o único norte a guiar a bússola estratégica de um país.
Equivocadamente alçado ao patamar de prioridade da política externa brasileira durante a gestão Lula 3, após um processo de deformação estratégica guiado por considerações ideológicas que são contrárias aos interesses do País, o BRICS se revelou disfuncional, sem coerência programática e no qual eventual capital diplomático brasileiro se vê cada vez mais diluído. Deveria ser visto apenas como foro complementar às demais interações bilaterais e multilaterais.
Não convém apostar todas as fichas em um projeto cujo potencial para divergências e desgaste político é maior do que para avanços ou aferição de benefícios concretos. Pior do que ser demovido a sócio júnior de um projeto chinês de reconstrução da ordem global segundo sua imagem, é servir como peão — ou inocente útil — em um jogo geopolítico mais amplo que atenta contra os próprios valores, princípios e interesses nacionais do Brasil.
Marcos Degaut é Doutor em Segurança Internacional, Pesquisador Sênior na University of Central Florida (EUA), ex-Secretário Especial Adjunto de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e Ex-Secretário de Produtos de Defesa do Ministério da Defesa